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Artigo adaptado do original na página Nomes Científicos

Por que falamos ‘credo’ quando estamos com nojo ou espantados?

Quando eu ministrava palestras de Educação Ambiental, comentava o problema de só evidenciarem a fofofauna nalgumas campanhas de preservação ambiental. Todo mundo quer proteger o urso-panda, a tartaruga-de-pente, o mico-leão-dourado, a onça, o elefante, o veado-campeiro, pois são umas gracinhas, mas quando falamos do caranguejo dos mangues, do calango da Caatinga ou da cobra-mole da Amazônia, parece que a sensibilidade não é a mesma.

Então, eu mostrava à plateia a foto de um filhote de ai-ai («(Daubentonia madagascariensis») e perguntava “Quem quer preservar esse filhote de cruz-credo?”. Isso gerava umas boas risada, mas também promovia uma reflexão sobre preservação. Para que proteger um “bicho feio” desses? Incrivelmente, se você digitar ‘filhote de cruz-credo’ no Google Imagens, encontrará várias fotos desse
primata.

O ai-ai é um lêmure que, como o nome científico sugere, é nativo da ilha, ilha do amor, Madagascar. Seus longos dedos, especialmente o do meio, usados para retirar larvas dos buracos de troncos, são seu instrumento de caça, mas também seu infortúnio. Segundo a crendice malgaxe, se o ai-ai apontar o dedo para uma pessoa, esta morrerá. :; Dizem também que o ai-ai mata pessoas adormecidas perfurando-lhes a aorta com o dedo médio. Credo!

Credo mesmo… Ou seria cruz-credo?

Quando nos deparamos em situações terríveis, de medo, de espanto, de prova de Física, é comum apelarmos para a ajuda divina. É um “valha-me, Santo Antônio” daqui, um “Maria passa na frente” dali, um “valei-me, Padim Ciço” de lá, um “Jesus, acende a luz” de cá. “Deus me ajude”, “Deus nos acuda”, “benza Deus” (do verbo benzer) e “Deus me livre” e são exemplos clássicos, mas já temos
os modernos “Deus me dibre” e “Deus me defenderay”.

Com o tempo, o pedido de socorro celeste passou de um desejo de intercessão sobrenatural para uma mera interjeição que acompanha o susto. Minha Mãe do Céu! Jesus! Meu Deus! Pelas barbas do profeta! Pelamordedeus! “Virgem Maria” foi sendo alterada até ficar por vige, vixe e ixe. Ave Maria tem se reduzida a ave, indo para aff… Em Minas, “Minha Nossa Senhora do Perpétuo Socorro!” foi
para “Nossinhora” e agora é apenas “Nó” (nalguns lugares “Nu”).

Esse mesmo processo aconteceu com o credo. A Cruz é o simbolo do cristianismo e, por vezes, do próprio Jesus. Em latim, lingua oficial da Igreja Católica, era comum usar a expressão “in Cruce credo”, que significa “eu creio na Cruz”. O uso cotidiano fez surgir, em português, a interjeição cruz-credo ou simplesmente credo —- ou ainda, pela primeira palavra, surgiu o cruzes.

Muitas vezes, para não se falar o nome do capiroto (o tinhoso, o maligno, o sete-peles, o dianho, o coisa-ruim, o cão-miúdo, o mochila-de-criança), tem quem prefira, em sinal de repreensão, dizer “o cruz-credo”. Daí vem o apelido do ai-ai.

Credo vem do verbo ‘credere’ que tem em nossa lingua descendentes como crédito, crediário, acreditar, credencial e crédulo. Regularmente, num professo fonológico chamado sincope, essa letra D sumiu do interior de várias palavras do latim para o português, : ‘crudelis’ — cruel; ‘videre’ — ver; ‘sedere’ — ser; ‘pedis’ — pé. Assim, ‘credere’ virou crer e ‘credentia’ ficou-nos por crença.

De crença, derivou a palavra crendice. Crença tem fundo religioso, é a fé; crendice é superstição de origem popular, sem vínculo religioso. Por culpa das crendices, ainda se matam mariposas, tamanduás-bandeira, jequitiranaboias, corujas e tantos outros animais associados ao mau agouro. Em Madagascar, onde o ai-ai é como se fosse um gato preto e todo dia lhe fosse uma Sexta-Feira 13, a espécie está ameaçada de extinção. Matam o ai-ai só por avistá-lo, como forma de se livrar do azar.

Ezequiel 44:23 E a meu povo ensinarão a distinguir entre o santo e o profano, e o farão discernir entre o impuro e o puro.